Meu nome é Cristiana, tenho 37 (quase 38) anos, sou psicóloga e psicoterapeuta e casada. Desde que me entendo por gente, Deus é uma presença constante em minha vida, em meus pensamentos e em meu coração. Uma presença muito real, com quem sempre conversei e dividi minhas angústias, minhas alegrias e meus desejos, e cujas respostas sempre ouvi muito concretamente através de pequenos acontecimentos e detalhes do cotidiano. Educada em colégio católico, lembro como se fosse ontem da primeira aula de religião, no antigo C.A. (classe de alfabetização): a Irmã Maria Amélia – pequenina, um pouquinho encurvada, um jeitinho simples e mineiro de falar, levemente dentuça, sempre de saia preta e camisa bege abotoada até o pescoço – fazendo o gesto de discar na palma da mão (começo dos anos 1980, tempos dos telefones cinzentos com fio e de disco da antiga Telerj) e ensinando que “o telefone de Deus” era “a oração: o telefone do coração”. Eu tinha 6 anos, e Deus era o meu “Papai do Céu”, com quem eu ia conversar diariamente na capela do colégio antes das aulas e na hora do recreio. Conversava muito também com a “Mamãe do Céu” – uma Nossa Senhora linda e coroada, que, do altar, Menino Jesus ao colo fazendo um gesto de bênção, me olhava com benevolência e compaixão. Aos seus pés estendia-se um misterioso letreiro em latim, o lema da ordem religiosa da escola: In Sion Firmata Sum, cujo significado sempre foi um enigma para mim.
Cresci com essa relação de afeto e familiaridade com Deus. A partir da Primeira Eucaristia, aos dez anos, passei a frequentar religiosamente (sem trocadilhos) a missa aos domingos com meu pai (minha mãe ficava em casa com minha irmã pequena). Só o que me perturbava um pouco era a noção recém-adquirida, junto com a Confissão que acompanhou a Primeira Eucaristia, de “pecado”, e a necessidade de estar “limpa”, através da confissão, para poder comungar. Resultado: todo domingo eu precisava chegar meia hora antes para entrar na fila da confissão e relatar meus pecadilhos: eu menti, eu impliquei com a minha irmã, eu fiz malcriação para a minha mãe, fui desaforada com meu pai…
Ao longo da adolescência foi nascendo a sexualidade, e começou a confusão. Ouvi dizer que masturbação era pecado – e, bem, toda semana eu ia me confessar e perguntar ao padre por que. Foram muitos padres, muitas explicações diferentes, mas nenhuma me convencia. Não conseguia entender por que aquilo seria “um ato de egoísmo”. Não conseguia entender como eu estaria prejudicando alguém. Eu não indagava num espírito de confronto; simplesmente era algo que não fazia sentido para mim, e queria muito compreender.
Ali começou a surgir uma imagem de um Deus que me poria à prova, perante o qual eu teria de me justificar e comprovar meu valor; um Deus que teria para mim planos que estariam além dos meus desejos mais imediatos e, para adequar-me à sua vontade, eu teria de “purificar” a minha. De filha querida, amada e confiante no colo do Pai, fui me tornando, aos meus próprios olhos, impura. Na tentativa de mostrar-me à altura dele, merecedora de seu afeto, esforcei-me por parar de chamá-lo daquele infantil “Papai do Céu” e “amadurecer”, passando a dirigir-me a Ele como “Deus” – ainda “Pai”, mas, sem que eu percebesse, mais distante, mais severo; um Pai de desígnios misteriosos e arbitrários, que nem sempre faziam sentido para mim e que eu já não compreendia mais.
Quando me dei conta da minha homossexualidade – que sempre, sempre, sempre tinha estado ali, embora eu simplesmente não tivesse olhos para ver –, já aos 18 anos, mergulhei no inferno da dúvida. Por um lado, coisas que nunca tinham feito sentido passaram a fazer, portas e janelas se abriram e uma lufada de ar fresco invadiu meus pulmões quando entendi finalmente que não precisava me obrigar a me interessar por meninos, a flertar com os meninos, a desejar os meninos, a me apaixonar por meninos e um dia a casar com um. O fascínio e o encantamento que as meninas me despertavam (bem, algumas delas) e que desde sempre me haviam levado a escrever poesias e suspirar e ansiar por estar com elas e tocá-las e protegê-las e receber sua atenção – isso era a tal atração, o tal flerte, o tal desejo, a tal paixão, o tal amor. Agora, sim, alguma coisa fazia sentido.
Por outro lado, havia a história do pecado. Se eu estava “em pecado”, não podia comungar. Durante a Eucaristia, chorava a alma, mas, em respeito ao sacramento, “não podia” ir recebê-lo enquanto não chegasse a uma conclusão quanto a ter o direito de fazer isso ou não. E toca a ir a todos os padres que estavam ao meu alcance perguntar por que ser homossexual era pecado, sem querer me dar conta do absurdo da pergunta – desde quando “ser” alguma coisa é pecado? Se eu “sou”, não é uma escolha, não pode ser pecado, assim como não é pecado eu ser, sei lá, destra ou canhota. De novo, recebi as mais diferentes respostas, e absolutamente nenhuma fazia sentido, porque eu tinha aprendido que “pecar” era escolher fazer mal a alguém, e eu não percebia nenhum mal em sentir o que eu sentia. Um dia, depois de ouvir de um padre muito querido todas as respostas que eu já conhecia de cor e salteado, e de retorquir com todos os argumentos que eu também já tinha na ponta da língua, ele, sem ter mais como continuar, jogou a toalha: “Minha filha, você vai ter que conversar com alguém mais esclarecido do que eu. Não sei mais o que dizer a você”. Foi uma luz no fim do túnel. Talvez houvesse sentido no que eu sentia, afinal.
Já na faculdade, já declaradamente fora do armário para família e amigos, mas ainda vivendo apenas paixões platônicas, sem que nada de concreto tivesse acontecido, fui convidada um dia para um retiro de iniciação aos exercícios espirituais de Santo Inácio. Ao final do retiro, antes da celebração eucarística, fui, como sempre, me confessar. E comecei minha ladainha: “Queria saber por que ser homossexual é pecado. Não consigo entender, pois, se é amor, e se todo amor gera vida…” Nesse ponto a voz sempre embargava, e engasguei; o padre entendeu, sorriu e teve a compaixão de me poupar do trabalho de continuar. “Minha filha, você tem toda razão. Todo amor gera vida. Pode ficar em paz.” E fiquei: naquele dia, comunguei em paz, finalmente, depois de alguns anos. Meu coração estava mais livre.
Percorrer o caminho dos exercícios inacianos, de lá para cá, foi um grande aprendizado – a começar pela presença amorosa, paciente e perseverante da minha orientadora, em si mesma uma graça do Pai em minha vida. Tem sido um caminho sinuoso, de longas voltas, de constantes recomeços e reconversões, de eternos retornos. Desde então, passaram-se mais de 15 anos de um contínuo voltar-me e voltar para Deus, e nele passo a passo reencontrar o Pai amoroso da minha infância, em cujo regaço posso repousar com confiança inocente e em paz; meu “Papai do céu”, que, mesmo quando me afasto, me conduz amorosamente por suas veredas, e que, nos momentos mais sombrios, quando me sinto só e brado “Meu Deus, por que me abandonaste?”, me carrega no colo em silêncio e sem que eu perceba, deixando apenas um par de pegadas na areia.
Assim, por meandros quase nunca fáceis mas sempre de graça em graça, cheguei em 2008 ao Diversidade Católica. Aqui descobri que o amor do Pai se faz sentir no amor que recebo dos que me amam e no amor que sinto por eles: meus pais, minha irmã, meus muitos amigos e outros tantos tão queridos. Aqui aprendi a viver em comunidade a graça desse amor radiante, e finalmente entendi o “onde um ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles” – porque aqui o amor do Pai, a Boa Nova de Cristo, se fazem sentir concretamente, sempre que estamos juntos eu e meus irmãos.
Aqui também recebi de presente, num dia de aniversário, a mulher ao lado de quem quero caminhar e crescer e com quero dividir todos os dias da minha vida e ter filhos para os quais transmitir os valores que compartilhamos e com os quais também aprender; mulher que admiro e respeito e amo com um amor tão profundo que não cabe em mim, transborda e torna a minha vida mais luminosa e minha caminhada mais leve. A minha família é a família dela, e a família dela é a minha; e minha maior felicidade é sermos família juntas, na certeza de que temos a responsabilidade de servir como agentes de multiplicação da infinidade de graças que recebemos.
Sobretudo, descobri também que Deus não me impõe nada além do que já é a minha própria natureza e vontade, aquela que reverbera no mais fundo do meu coração. Deus, em seu amor, não me pede sacrifícios nem me propõe jogos, testes ou provas. Tudo o que ele quer é que eu seja feliz; para isso ele me preparou, e tudo o que eu devo fazer é me deixar conduzir por ele na realização daquilo que eu sou desde sempre e desde sempre me impulsiona e pulsa no meu ser.
Foi assim, por um desses carinhos sutis com que o Pai nos aconchega e faz sentir o seu amor, que recentemente decifrei um dos maiores mistérios da minha infância: o In Sion Firmata Sum, a inscrição aos pés de Nossa Senhora de Sion, lema gravado no altar que tanto me intrigava em pequena, traduz-se como “Estabeleci-me firmemente em Sião”. Sem que eu soubesse, esse lema esteve desde sempre gravado na minha alma, no meu coração e no meu nome como um sinal. Sim, de pés plantados na rocha da qual ninguém me pode arrancar, “estabeleci-me firmemente em Sião”: ninguém, nem eu mesma, pode me afastar dos sacramentos nem da Igreja dos meus irmãos.;ninguém pode me tirar de junto desse Pai que me ama sem razão nem porquê, com esse amor de uma gratuidade louca e escandalosa, sem que eu nada tenha feito para merecer. Porque, sim, desde o nascimento eu sou o que sou: Cristiana, mulher, gay, cristã, católica e filha amada incondicionalmente, irrestritamente, pelo Pai Infinitamente Amoroso, e por Ele capaz de amar, e refletir e espalhar o seu amor.
E que para sempre seja louvado.
Cris