Fui sempre o bom católico e agi de acordo com os protocolos. Fiz minha primeira comunhão de branco em uma igrejinha daquelas que a gente só vê nos filmes dos Trapalhões no Ceará. Aos 15 anos, também como todo bom católico, fiz Crisma, na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. Além de ter recebido o sacramento pelo Bispo, tudo direitinho, fiz meu curso de Crisma na Catedral também, onde tínhamos freqüentes visitas do próprio sob o olhar de nossa catequista , como que dizia “senta direito”. A partir dali fui para uma paróquia mesmo. Rapidamente entrei num grupo, me envolvi em sua liderança e sempre ia onde me chamavam, fiz e servi em diversos encontros, retiros e formações. Meu Domingo, não era de descanso.
Um deles me tocou em especial aos 18 anos e resolvi largar o trabalho que realizava na Paróquia da Na Sra do Rosário de Fátima S. Antônio de Lisboa na Taquara aqui no Rio e seguir ao chamado, segundo meu entendimento da época. De forma muito lúdica e carismática seguia o meu caminho de bom católico, procurando em minha postura avançar no que podia em tão encantadora maneira de viver minha espiritualidade.
A experiência proporcionada a mim e depois retransmitida aos demais era de um calor humano fantástico e assim segui por mais 5 anos.
O engraçado foi que nos mesmos 18 anos, justo no período do bendito “chamado”, foi nesta mesma idade que me envolvi com um rapaz na escola. Digamos que naquele momento eu larguei a “meinha” que sempre rolava aqui e ali pra tremer as tamancas, suar frio pra entender o que acontecia comigo. Como todo adolescente era tudo muito confuso e difícil, mas óbvio, sempre podia ficar pior.
Neste momento iniciou dentro de mim um conflito. Eu não tinha a quem pedir socorro. O social pesava, no entanto, peso maior era imaginar o que seria de mim aos olhos de Deus e de minha comunidade. Sabia que poderia procurar um psicólogo, mas a nuvem de confusão em minha cabeça que só me ocorria orar e pedir a Deus “pra curar” em meio aos pesadelos e prantos da madrugada era tremenda. E não é exagero! O peso da culpa era sufocador. Impensável tocar neste assunto com qualquer pessoa pra pedir ajuda. Porém, fui recorrer a alguns Padres através do sacramento da confissão.
Como “ninguém poderia saber” fui pra longe de qualquer Padre que conhecia em paróquias distantes. Entrava no convento de Santo Antonio na Carioca, em confissões comunitárias longes de casa e escolhia o Padre que tivesse menos cara de mau. Ao contrário do que ocorreu com muitos amigos meus, ao contrário mesmo, todos os Padres a que recorri, e não foram poucos, me acolheram com palavras amorosas. Esta poderia ter sido uma atitude camicase e que não recomendo. Mas, a mão de Deus neste momento foi tão providencial que sabendo do meu desespero tateou o meu caminho dos clérigos homofóbicos, mesmo diante da minha “malicia”.
Procurei análise e com o tempo fui vivendo de maneira menos conflitante frente a forma enfática que algumas ideias eram colocadas em minha comunidade carismática. Digamos que no nível da minha consciência as coisas estavam mais calmas, pois nos relacionamentos que pintavam aqui e acolá, passava pela cabeça, “ok, Deus me ama assim mesmo, mas bem que eu poderia ser normal, né…”.
O haraquiri deste processo, foi quando “fui descoberto” na vida dupla que vinha as duras penas tentando conciliar. Os coordenadores de minha comunidade me chamaram, me perguntaram se eu era gay, eu fui afirmativo, perguntaram se eu desejava permanecer em pecado, disse que não me sentia assim. Ofereceram “ajuda espiritual”, disse que não necessitava. Ajuda psicológica? Por que do segredo? Por que não escolheu o celibato? E depois de muitas perguntas descabidas e debates sobre “pode, não pode”. Por fim, “você sabe o que a Igreja pensa?”, então, fui destituído de todas as minhas funções e convidado a se retirar, sob a justificativa de que “uma laranja podre poderia estragar todo o cesto”.
Fui forte, não me abalei naquele instante, meu coração queria saltar pela boca, senti-me orgulhoso por não negar nada diante da “inquisição”. Minha casa, ficava na época pelo menos 1 hora de distancia, era 23:30 de um domingo e tive o caminho inteiro pra chorar e por pra fora o que segurei, nas mais de 3 horas de conversa.
Durante o choro, duas coisas eu pensei, “Meu Deus! Tem mais gente passando por isso”, a outra foi, “tenho que fazer algo”. Fui uma andorinha só tentando fazer verão, não achava justo o que aconteceu comigo e queria vozes pra unir a minha. Fui em uma outra paróquia e fui novamente tateado por Deus onde também não conhecia o Pároco, relatei tudo ao Padre que nada pode fazer, a não ser me acolher e falar “fique aqui”. Permaneci na paróquia nova e ganhei o mais lindo trabalho pastoral que já fiz – cuidar de crianças.
Naquelas crianças, e umas nem tão crianças assim, cerca de 40 que atiravam sapatos no Padre e nos seminaristas, encontrei o colo que a Igreja, a instituição, não me deu. A elas eu achava que ensinava algo. Mas, elas muito me ensinaram, era amorosamente acolhido. Com isso a dor da magoa ia se dissipando, naquele lugar eu era bem-vindo, mas quem dizia que eu deveria deixar de ser católico agora era minha consciência. Fiquei um ano, cuidando dos Coroinhas, da Paróquia da Divina Providencia, também na Taquara. No dia que resolvi ir embora, ganhei o abraço mais coletivo, marcante e apertado do mundo. Parecia que a Igreja, Aquela Igreja dizia, “pode ir, mas tô aqui tá.”
Passei a brincar com os amigos dizendo “quando eu era católico…” , questionei todos os ritos que não me religavam, todos os protocolos que tive que cumpri, o meu jeito “bom católico de ser”, pensava que se um dia eu voltasse a ter uma religião os ritos deveriam me ligar a algo. Aproveitei que estava saindo do armário e tirei toda a tralha pra fora, tive coragem de dizer pra mim aquilo que não gostava e o que gostava. Depois, a única coisa que sobrou foi o armário mesmo e este eu resolvi jogar fora de vez.
Entender o que se passava comigo aos 18, foi meio novelística mesmo. Mas, foi a maior benção que eu já puder receber – entender que era gay. Ter a chance de questionar uma parte de mim que era confusa como a minha sexualidade. Talvez, seja tenha sido providencial a confusão que se deu mesmo, porque ao longo da bagunça pude ter a chance de mandar pra faxina um monte de coisa que não tava legal. Vai ver que o “tal chamado” que recebi aos 18 foi realmente um chamado duplo de Deus mesmo. Um convite a ser quem eu era que compunha identidades que jamais deveriam ser dissociáveis – gay e católico. Como todo chamado foi um calvário e houve muito sofrimento inútil, mas hoje vejo o que antes eu tomava como uma praga, tenho como uma benção que todos deveriam agradecer. Todos!
Quando fui convidado a conhecer o Diversidade Católica, fui só pra fazer uma experiência antropológica e conhecer os exóticos gays que insistiam em ser católicos e aqui estou até hoje desde março de 2009. Venho desde então, zunindo o “bom católico” que fui e desbravando um modo de existir só meu. Como diria a Dori do Nemo, “continuo a nadar”, tomando posse daquele que sou pegando o que é meu, dizendo que a Igreja me pertence e ninguém tasca!
Depoimento escrito por Rodolfo Viana, em 2011, para o nosso blog, do qual ele foi colaborador até 2014.