Artigo de 2010 do teólogo franciscano Timothy Radcliffe a propósito dos escândalos em torno das denúncias de abusos sexuais por padres na Europa. Um dos teólogos mais polêmicos da Igreja, e um forte aliado do Papa Francisco, Radcliffe desde 2015 é consultor do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” (saiba mais aqui).
Novas revelações de abusos sexuais por padres na Alemanha e na Itália provocaram uma onda de raiva e de desgosto. Eu recebi e-mails de pessoas de toda a Europa perguntando como eles ainda podem ficar na Igreja. Eu até recebi um formulário com o qual poderia renunciar à minha participação na Igreja. Por que ficar?
Primeiro, por que ir? Algumas pessoas sentem que não podem mais ficar associadas a uma instituição que é tão corrupta e perigosa para as crianças. O sofrimento de tantas crianças é de fato horroroso. Elas devem ser a nossa primeira preocupação. Nada do que vou escrever pretende, de forma nenhuma, diminuir nosso horror diante do mal dos abusos sexuais. Mas as estatísticas para os EUA, do John Jay College of Criminal Justice de 2004, indicam que o clero católico não causou mais ofensas do que o clero casado de outras Igrejas.
Algumas pesquisas apresentam até um nível menor de transgressões por parte dos padres católicos. Eles são menos propensos a cometer transgressões do que professores leigos de escolas, e talvez essa probabilidade em comparação à população em geral seja até a metade. O celibato não leva as pessoas ao abuso de crianças. É simplesmente uma inverdade imaginar que deixar a Igreja para ir a outra denominação deixaria nossos filhos mais seguros. Devemos encarar o terrível fato de que o abuso de crianças está espalhado em todas as partes da sociedade. Fazer da Igreja um bode expiatório seria um forma de encobrimento.
Mas e os encobrimentos dentro da Igreja? Nossos bispos não foram chocantemente irresponsáveis ao transferir os abusadores de um lado para o outro, não os denunciando à polícia e, assim, perpetuando os abusos? Sim, às vezes. Mas a grande maioria desses casos remonta aos anos de 1960 e 1970, quando os bispos geralmente consideravam os abusos sexuais como um pecado em vez de uma condição patológica também, e quando os advogados e psicólogos comumente lhes tranquilizavam dizendo que era seguro transferir os padres depois do tratamento. É injusto projetar ao passado uma consciência de natureza e de seriedade dos abusos sexuais que simplesmente não existia então. Foi apenas a ascensão do feminismo no final da década de 70 que, ao jogar luz sobre a violência de alguns homens contra mulheres, nos alertou sobre o terrível dano cometido contra crianças vulneráveis.
Mas e o Vaticano? O Papa Bento XVI assumiu uma linha forte ao abordar essa questão como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e assim que se tornou Papa. Agora, os dedos estão apontados contra ele. Parece que alguns casos denunciados à Congregação sob a sua guarda não foram tratados. A credibilidade do Papa não está minada? Há manifestantes em frente à Basílica de São Pedro pedindo sua renúncia. Eu estou moralmente certo de que ele não carrega nenhuma culpa aqui.
Geralmente se imagina que o Vaticano seja uma organização ampla e eficiência. De fato, ele é muito pequeno. A Congregação para a Doutrina da Fé emprega 45 pessoas, lidando com questões doutrinárias e disciplinares de uma Igreja que tem 1,3 bilhão de membros, 17% da população do mundo e cerca de 400 mil padres. Quando eu tive contato com a Congregação como Mestre da Ordem Dominicana, ficava óbvio que eles estavam se esforçando para dar conta. Os documentos passavam despercebidos. O cardeal Joseph Ratzinger lamentou comigo que a equipe era simplesmente muito pequena para o trabalho.
As pessoas estão furiosas com a falha do Vaticano em abrir seus arquivos e oferecer explicações sobre o que aconteceu. Por que ele é tão secreto? Católicos com raiva e dor sentem-se no direito de ter um governo transparente, e eu concordo. Mas devemos, em justiça, compreender por que o Vaticano é tão autoprotetor. Houve mais mártires no século XX do que em todos os séculos anteriores somados. Bispos e padres, religiosos e leigos foram assassinados no Leste Europeu, nos países soviéticos, na África, na América Latina e na Ásia.
Muitos católicos ainda sofrem prisões e morte por causa de sua fé. Claro, o Vaticano tende a acentuar a confidencialidade: isso foi necessário para proteger a Igreja de pessoas que desejavam destruí-la. Então, é compreensível que o Vaticano reaja agressivamente a demandas por
transparência e que leia os pedidos legítimos por abertura como uma forma de perseguição. E alguns integrantes da mídia desejam realmente, sem dúvida, prejudicar a credibilidade da Igreja.
Mas temos uma dívida de gratidão para com a imprensa pela sua insistência para que a Igreja encare suas falhas. Se não fosse pela mídia, então esses abusos vergonhosos permaneceriam sem ser discutidos.
A confidencialidade também é uma consequência da insistência da Igreja sobre o direito de todos os acusados a manterem seu bom nome até que sejam provados culpados. Isso é muito difícil de entender para a nossa sociedade, cuja mídia destrói a reputação das pessoas sem nem pensar.
Por que ir embora? Se é para encontrar um porto mais seguro, uma Igreja menos corrupta, então eu acho que você vai ficar desapontado. Eu também almejo um governo mais transparente, um debate mais aberto, mas o segredo da Igreja é compreensível e às vezes necessário. Entender nem sempre é fechar os olhos, mas é preciso se queremos agir com justiça.
Por que ficar? Eu devo colocar minhas cartas sobre a mesa. Mesmo que a Igreja fosse obviamente pior do que outras Igrejas, eu ainda assim não iria embora. Eu não sou católico porque a nossa Igreja é a melhor, ou mesmo porque eu gosto do catolicismo. Eu realmente amo muitas coisas da minha Igreja, mas existem aspectos dela que eu não gosto. Eu não sou católico por causa de uma opção de consumo em um “Waitrose” ao invés de um “Tesco” eclesiásticos [marcas de supermercado ingleses], mas sim porque eu acredito que ela encarna algo que é essencial ao testemunho cristão da Ressurreição: a unidade visível.
Quando Jesus morreu, sua comunidade se dividiu. Ele havia sido traído, negado, e muitos de seus discípulos fugiram. Foram principalmente as mulheres que o acompanharam até o fim. No Dia da Páscoa, ele apareceu aos discípulos. Essa foi mais do que uma ressuscitação física de um cadáver.
Nele, Deus triunfou sobre tudo o que destrói a comunidade: pecado, covardia, mentiras, incompreensão, sofrimento e morte. A Ressurreição se tornou visível ao mundo por meio da visão impressionante do renascimento de uma comunidade. Aqueles covardes e negadores foram reunidos novamente.
Eles não eram um grupo honrado, e se envergonharam por aquilo que haviam feito, mas novamente eram um. A unidade da Igreja é um sinal de que todas as forças que fragmentam e dispersam são derrotadas em Cristo.
Todos os cristãos são um no Corpo de Cristo. Eu tenho o mais profundo respeito e afeto pelos cristãos de outras Igrejas que me alimentam e inspiram. Mas essa unidade em Cristo precisa de uma encarnação visível. O cristianismo não é uma espiritualidade vaga, mas sim uma religião da
encarnação, em que as verdades mais profundas assumem a forma física e às vezes institucional. Historicamente, essa unidade encontrou o seu foco em Pedro, a Rocha de Mateus, Marcos e Lucas e o pastor do rebanho do evangelho de João.
Desde o começo e ao longo da história. Pedro muitas vezes foi uma rocha vacilante, uma fonte de escândalo, corrupta, e mesmo assim ele é o escolhido – e seus sucessores –, cuja tarefa é nos manter unidos, de forma que possamos testemunhar a vitória de Cristo no Dia da Páscoa sobre o poder de divisão do pecado. E assim a Igreja está grudada em mim independentemente do que acontecer. Podemos até nos envergonhar em admitir que somos católicos, mas Jesus teve companhias vergonhosas desde o começo.
Timothy Radcliffe, OP
Publicado originalmente aqui, em maio de 2010.