Compartilhamos com alegria a matéria escrita pela amiga Elis Bartonelli e publicada no site do Projeto Colabora (aqui) em 25/12/2019, com participação de membros do Diversidade Católica e de outros grupos irmãos da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT:
“Tente se portar de um jeito mais masculino. Desça o tom de voz, coloque as mãos na cintura, dentro do bolso da calça, evite gesticular”. Essas foram algumas orientações que o gerente de loja Alexandre Sinotelli, de 41 anos, ouviu durante alguns meses dentro de um grupo católico quando tinha 27 anos.
Até então, Alexandre, que se aproximara da Igreja na adolescência, nunca tinha encarado os sinais de que poderia ser homossexual. Da primeira vez que escutou isso de um dos membros do grupo, pensou em se matar.
“Achava que não daria conta de ser a pessoa que eles gostariam que eu fosse. Mas achava que Deus me curaria e me propus a tentar essa ‘cura gay’. Como não queria aceitar quem eu era, comecei a achar bacana. Mas chegou num ponto em que comecei a me perder”, lembra ele.
Sentimento de culpa, medo e não pertencimento à comunidade católica são comuns a quem enfrenta situações como as vividas por Alexandre. Na tentativa de resolver essa suposta incompatibilidade entre homossexualidade e catolicismo, LGBTs católicos têm se reunido em grupos de conversa para trocar experiências e entender como viver plenamente a sexualidade sem renunciar à religião. E tem a compreensão até de sacerdotes em postos de hierarquia na Igreja Católica.
Bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antônio Augusto Dias Duarte frisa que a Igreja Católica condena a falta de acolhimento das pessoas, seja por opções políticas, econômicas, culturais ou morais. No entanto, de acordo com ele, em qualquer época, há quem prefira recriminar a praticar a misericórdia.
“A moral cristã é um encontro com Jesus Cristo, não são normas. Ao abrir o Evangelho, você encontra uma mulher adúltera que os homens querem apedrejar. E Jesus não a condenou, a defendeu. Isso é o cristianismo. Quem não pratica a misericórdia não tem a maturidade da fé”, explica o bispo, acrescentando que a afirmação da sexualidade de cada um é um processo de amadurecimento.
“Um ato sexual realizado tanto por pessoas do mesmo sexo quanto de sexos distintos pode ser desordenado. Isso porque não é só a realização física que dá a perfeição ao ato, mas sim o valor, a intenção. O ato íntimo não serve só para a procriação. É uma linguagem interpessoal que tem dimensão genital, afetiva, cultural, social”, completa ele.
Apesar da orientação da Igreja Católica pedir respeito e acolhimento, na prática, o oposto, frequentemente, se impõe. O conflito entre a homossexualidade e fé católica é comum entre seguidores LGBTs e passa por muitos pormenores. A rigidez de tendências conservadoras, muitas vezes, traz consequências graves para os fiéis. Esse embate costuma afastar membros de suas paróquias, promove agressões verbais e situações de constrangimento dentro das comunidades católicas e chega a provocar quadros de depressão e ansiedade.
Foi para enfrentar esse desafio de convivência que começaram a aparecer os grupos LGBTs católicos. O primeiro dessa linha o Brasil, o Diversidade Católica, surgiu no Rio de Janeiro em 2007. Os integrantes se reúnem mensalmente, conversam, rezam e compartilham angústias e aprendizados. Desde então, pelo menos outros dois grupos já surgiram no estado: chegam a, pelo menos 18, no Brasil. Em 2014, seus representantes fizeram um encontro nacional no Rio e, em 2017, ganharam existência formal como a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT. O segundo encontro aconteceu em 2018 e o terceiro está programado para o ano que vem.
“Queremos um ambiente seguro para as reuniões e reforçar que esses grupos são leigos. A Igreja é todo o povo de Deus e é responsabilidade de cada um reconhecer a verdade da revelação nos tempos que correm e não esperar que a hierarquia da Igreja imponha uma verdade eterna imutável. Estamos aqui para dar o testemunho de que a nossa sexualidade não tem nada de desordenada. Não temos nenhum problema sexual ou afetivo. Não estamos pedindo para entrar na Igreja Católica, já estamos dentro dela”, explica Cristiana Serra, coordenadora nacional da Rede e autora do livro “Viemos para comungar: Os grupos de católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de permanência na Igreja”.
O estudante de história Mathews Mathias, de 23 anos, entrou para o Diversidade Católica em 2018, depois de uma exaustiva jornada em busca de aceitação. Criado dentro da Igreja Metodista, se converteu ao catolicismo na adolescência. Inicialmente, encontrou acolhimento, mas, à medida que seu desejo ficava mais intenso, os conflitos com a religião aumentavam.
Mathews chegou aos 18 anos sem ter se relacionado com nenhum garoto, embora tenha tido diversas oportunidades. Costumava chorar e pedir para que Deus tirasse a homossexualidade dele, acreditando que havia recebido um castigo divino. Quando entrou para a faculdade, a situação ficou insuportável. O estudante decidiu se abrir para experiências com homens e percebeu que precisava resolver a questão.
“Comecei a me confessar sobre isso. Alguns padres eram compreensivos, mas pediam para eu tirar isso de mim. Outros nem quiseram me ouvir. Um me expulsou da igreja, disse que não tinha espaço para mim. Me afastei de tudo, fiquei um ano sem comungar porque me sentia sujo. Mas continuava tendo a minha fé, acreditando na eucaristia. Foi no Diversidade que entendi que sou um só: católico e gay. Entendi que Deus me fez desse jeito, me ama desse jeito”, conta ele.
Por todo o Brasil, as histórias de quem procura os grupos de acolhida são complexas e têm muito em comum. A estudante do curso técnico de administração Maria de Jesus de Carvalho, de 21 anos, frequenta o Diversidade Cristã em Teresina (PI). Jesus, como é chamada pelos amigos, leva no nome a devoção de sua mãe ao catolicismo.
Criada dentro da Igreja, ela enfrenta conflitos com a sexualidade desde a infância. Teve alguns relacionamentos com meninos até que, aos 15 anos, assumiu sua homossexualidade para a mãe. No entanto, seu primeiro namorico com uma menina aconteceu apenas aos 19. Além da certeza de ser lésbica, ela ainda convive com a desconfiança de ser transexual. Por isso, criou uma alcunha a partir do seu nome de batismo: Airam, um anagrama de Maria. Tantos conflitos levaram Jesus a desenvolver um quadro de pré-depressão e ansiedade. Durante a adolescência, enquanto ocupava a função de coroinha da paróquia por seis anos, sonhava que a solução dos seus problemas seria o celibato.
“Coloquei na cabeça que a minha vocação era ser freira. Estava louca para ir para o convento, mas, ao mesmo tempo, não me sentia à vontade. Visitei alguns deles, participei de retiros com irmãs, até que uma amiga colocou meus pés no chão e disse que eu não seria feliz. Cheguei a ir atrás de processos de cura, participava de orações de libertação na minha paróquia. Até hoje acredito que vou para o inferno por tudo isso. Ainda preciso desconstruir muito a religião”, explica ela.
Além dos próprios LGBTs, os grupos acolhem muitos pais e outros familiares de homossexuais que tiveram dificuldade de lidar com a orientação sexual dos filhos. A dentista Rosângela Cantuária, de 56 anos, e o síndico profissional Marcos Moreira, também de 56, coordenavam o grupo de casais da paróquia que frequentam, no Recreio, Zona Oeste do Rio, quando Bernardo, filho caçula do casal, contou que era homossexual.
“Me revoltei com Deus por estar dentro da Igreja, servindo, ter criado meus filhos ali e isso acontecer na minha casa. Procuramos o padre achando que não éramos dignos de estar em uma função dentro da paróquia por causa disso”, lembra Rosângela.
O sacerdote, no entanto, surpreendeu os dois. Explicou que era preciso acolher Bernardo, como Jesus faria. O casal, então, “saiu do armário” junto com o filho. Permaneceu na Igreja e decidiu montar um grupo de apoio a pais de homossexuais na comunidade. Assim, em 2018, os dois passaram a frequentar as reuniões do Diversidade Católica e são cofundadores do Abraço Cristão, que completa um ano em março do ano que vem.
“Sentimos a necessidade de fazer alguma coisa para ajudar outros pais dentro da nossa paróquia, para que não sofram como nós sofremos. Temos conseguido transformar as pessoas através do nosso testemunho. Tem sido gratificante”, conta Marcos.
A psicóloga Alessandra de Moura, de 49 anos, é mãe de um casal de filhos. Ela procurou o Diversidade Católica assim que os dois contaram a ela que eram LGBTs, há cerca de três anos. Alessandra diz que nunca se preocupou com a possibilidade de sua fé ser abalada por isso, mas tinha medo de que os dois sofressem preconceito na paróquia que frequentavam, em Vila Valqueire, na Zona Norte do Rio. Desnorteada, ela procurou ajuda no grupo. Hoje, os três assistem à missa de mãos dadas.
“Eu não podia permitir que a orientação sexual dos meus filhos me afastasse da Igreja. Quando você tem certeza de que crê em um Deus que ama a todos, fica tranquila. A relação deles com a fé, o sacramento, a comunhão está resolvida. Jesus aceita meus filhos como eles são, estou em paz com isso. Mas ainda tenho medo das pessoas e dos padres mais conservadores”, avalia ela.
Os ataques virtuais aos grupos de acolhimento são frequentes em todo o Brasil. Perfis conservadores agridem, xingam e ameaçam nas redes sociais os participantes e líderes religiosos que, muitas vezes, acompanham as reuniões. Cornélio Santiago, fundador e coordenador do grupo Diversidade Cristã de Teresina, enfrentou muita resistência: “Nos primeiros dois anos, os embates foram muito fortes. Foram ataques profundos, queimando o grupo, dizendo que estamos autorizando uma vida de pecado. Recebi ataques de pessoas que me viram crescer, como se não conhecessem a minha índole. Muitos se afastaram do padre que nos acompanhava”, contou
Em Belo Horizonte, o cenário se repete. O grupo Cristãos pela Diversidade precisou trocar o local dos encontros para fugir das agressões de grupos conservadores. Segundo Isabella Elian, uma das coordenadoras, as manifestações contrárias aos encontros e as tentativas de cerceamento deles ficaram mais frequentes depois das eleições de 2018. Mesmo assim, os integrantes não desistiram.
“Ao mesmo tempo que grupos como o nosso vêm crescendo, a pressão conservadora também tem aumentado fortemente. É importante que continuemos, para manter as pessoas juntas. No entanto, resolvemos deixar o espaço eclesial onde fazíamos os encontros e hoje nos reunimos em praças e nas casas dos participantes”, conta ela.
O alento para cristãos LGBTs tem chegado diretamente do ponto mais alto da hierarquia católica. Os recentes acenos do Papa Francisco à comunidade LGBT – entre eles, recentes declarações contrárias à homofobia e o recebimento de um transexual para uma audiência – deixam os fiéis mais à vontade para seguirem na religião.
“A figura dele foi muito importante, até para o grupo começar. É claro que tem dia em que ele dá aval, tem dia em que ele tira. Mas a figura dele já cria possibilidade de abertura. Muitas mães nos procuraram contando sobre o discurso dele, o que mostra que isso deu apoio, segurança para as pessoas”, avalia Isabella.
Depois de ouvir, dentro da sua paróquia, homilias contra homossexuais, Alexandre Sinotelli, o personagem que abriu a reportagem, escreveu para o pontífice questionando se deveria abrir mão da sexualidade ou da vida dentro da Igreja Católica. Na carta, ele contava que havia deixado a função de catequista por conta dos discursos do padre, mas não queria desistir da fé. Em outubro deste ano, ele recebeu uma resposta do Papa.
“Me deixou profundamente emocionado. O documento tem dois trechos muito interessantes. O primeiro é que ele me manda procurar um sacerdote esclarecido. E o segundo é quando ele pede que eu não me afaste de Jesus e diz: ‘estendo a minha bênção apostólica’. Isto é: abençoa o fato de eu estar em missão, ser um apóstolo”, conta ele.