Vivia uma adolescência conturbada, explodindo questionamentos e angustia existencial. Até que conheci algumas pessoas da Igreja, e fui magicamente resgatado de uma solidão que acreditava ser eterna. Com eles eu não precisava parecer mais forte, mais seguro. Mesmo a minha falta de jeito para eles era um charme. Até então acreditava que a adolescência era o pior tempo da vida e tudo o que queria era crescer e deixar esse tempo para trás.Com eles passei a gostar de ser jovem, de estar no aqui e agora, de ser eu mesmo – ainda que soubesse bem pouco sobre mim mesmo até então. Formamos um grupo jovem chamado PANE (Para Amar Nós Existimos), no dia 06 de agosto de 1978.
Toda esta felicidade durou oito meses, e logo meu pai se transferiu de volta ao Rio de Janeiro com todos os seis filhos. Passei a freqüentar as missas da Igreja da Ressurreição no Posto 6. Achei que era para mim um chamado convocar jovens a partir dos 16 anos para ensinarem o catecismo, preparando crianças para a primeira comunhão. Atendi imediatamente e nos 4 anos seguintes (cada turminha durava 2 anos) tive um compromisso certo todos os sábados pela manhã.
Daí passei a dar palestras nos encontros da Igreja e de outras paróquias também. Fiz cursos de formação de lideranças e assumi uma coordenação na Pastoral da Juventude, na Arquidiocese. Em 1980, quando João Paulo II veio ao Brasil pela primeira vez, ajudei a formar o coral de 2000 vozes, que cantou para o papa no Aterro.
Minha espiritualidade continuava alegre e celebrando a vida, mas o fantasma da minha religiosidade infantil voltou a assombrar-me com maior frequência. Tentava abafar os clamores sexuais da explosão hormonal, que eram cada vez mais fortes, com orações e leituras do Evangelho. Minha vocação gay era cada vez mais difícil de ser ignorada. Por outro lado, os clamores sociais e políticos daqueles últimos anos de chumbo também eram cada vez fortes, e tampouco pude ignorá-los. Trabalhei na fundação de um partido e militei no movimento estudantil da Faculdade de Medicina, onde eu estudava. Acabei abraçando um novo estilo de vida, que me parecia a única forma de viver minha identidade homoerótica: deixei a Igreja, a Faculdade, o Partido e a casa de meus pais.
A minha sede espiritual que vinha sendo bem saciada desde aqueles anos do PANE, procurei aplacar – ainda que sem consciência- com spirits (destilados em inglês). Daí em diante, minha vida foi descendo ladeira abaixo. Seguia sendo o mesmo amigo amoroso, idealista e sensível às injustiças sociais. Mas a maior parte das vezes isso só fazia aumentar as doses necessárias para aplacar minhas sedes sem fim. Doses de prazer imediato que conseguia com o álcool, as drogas e o sexo desenfreado.
Há exatos treze anos, em dezembro de 1997, comecei a trilhar este caminho de volta, justamente com uma viagem a Brasília, onde pude reencontrar aqueles tais amigos, que havia deixado 18 anos atrás. Aos poucos eu já estava seguindo de volta para casa, e nem poderia sonhar com a festa que o Pai estava me preparando. Tudo o que queria era fugir da dor e do sofrimento em que vivia mergulhado. Já podia até ouvir a música da festa na casa do Pai. Foi então que recebi o telefonema da Heloisa, contando que estavam formando um grupo de gays católicos. Atendi ao chamado mais por curiosidade intelectual do que qualquer outra coisa. No primeiro encontro, fui surpreendido por uma emoção inesperada: viver a eucaristia num ambiente especialmente acolhedor, que aconteceu antes da reunião. Visivelmente emocionado, eu me justifiquei e fiz questão de dizer que não sabia se deveria estar ali, porque eu não era mais católico. Foi quando me disseram que eu era bem-vindo de qualquer maneira. Fui voltando, voltando e entre uma reunião e outra, senti vontade de ir à missa. Escolhi a missa do pe. França, aos domingos às 07h30. Assim, não seria reconhecido e me pouparia ter de explicar o que estava fazendo ali.
O novo grupo passou a se chamar Diversidade Católica, e se dedica a acolher as reses desgarradas ou prestes a se desgarrarem da Igreja. Somos convidados a integrar nossas identidades que tanto pareceram opostas para a maior parte de nós. Por outro lado, somos chamados a viver esta experiência como uma missão. Uma missão exclusiva que somente cada um de nós pode cumprir.
Através deste rebanho, eis que voltei à Igreja e recebi um novo chamado pessoal: um pedido de voluntários para o Coro da Ressurreição, que carece especialmente de vozes masculinas. Não pude ignorar este chamado. Faz parte de minha volta para casa. Embora o caminho de volta seja longo e ainda tenha muito a seguir, já posso sentir o calor do abraço do Pai, já percebo a luz de Seu amor incondicional.
Outro dia, meu companheiro adoeceu, e todos os colegas do Coro da Igreja souberam da minha aflição. Sempre perguntam pelo meu amigo desde então. Sem me dar conta, eles começaram a ver-me também na minha dimensão homoerótica. Mesmo depois disso, minha casa foi escolhida para sediar a confraternização de Natal do Coro. Fiquei muito feliz por recebê-los no lar onde vivo com meu companheiro.
Quando meu companheiro e eu decidimos caminhar juntos, nós nos ajoelhamos e pedimos a Deus que permitisse nossa união, desde que ela fosse útil a Ele e aos nossos próximos. Encontramos muitas dificuldades para manter nosso propósito, especialmente a distância física: mais de 2000 km nos separavam! Mas seguimos juntos há mais de seis anos e já vivemos sob o mesmo tempo há 3 anos. Talvez a Igreja nunca reconheça uma união entre pessoas do mesmo sexo como um casamento. Tampouco eu sei se isto seria desejável, dependendo do modo como esta instituição é vista e vivida dentro e fora da Igreja. Sabemos, no entanto, que ela será abençoada por Deus se e somente se for útil aos Seus planos.
O jantar de Natal do Coro foi ontem à noite e, na hora da oração, fiz questão de agradecer a oportunidade de coroar este meu momento de vida com aquela festa. Contei como e porque tinha estado tanto tempo afastado da Igreja. Comentei que embora tenha sido necessário me afastar da Igreja para viver minha dimensão homoerótica, nunca cheguei a me desligar realmente de Deus e que o pároco de nossa Igreja vinha acompanhando esta minha trajetória de perto, e nunca havia se preocupado em me recriminar, mas sempre se mostrou aberto a acolher-me caso eu quisesse voltar. Em seguida, recebi sinais explícitos de apoio e solidariedade de quase todos os presentes, alguns fazendo questão de agradecer verbalmente a confiança da revelação, e todos se mostrando muito felizes por estarem ali, naquela hora. Uma hora de vida, que se tornou um ritual. Eu também estava vivendo um momento feliz. Eu já tinha precisado da ajuda dos amigos do Diversidade Católica para sair do armário e assumir minha identidade católica. Assim, inteiro, pude apostar na acolhida dos meus colegas paroquianos, cujos princípios cristãos falaram mais alto que as crenças e os hábitos próprias de suas gerações e formações; apesar de tantas vezes a hierarquia da Igreja dirigir-se de modo pouco amoroso a tantos gays que insistem em procurar viver segundo a inspiração do Cristo e dentro da Igreja Católica.
Depoimento escrito para o site do Diversidade Católica por um dos fundadores do grupo: Arnaldo, 47 anos, do Rio de Janeiro. Republicado em 2011 em nosso blog.