Celebramos a Imaculada Conceição de Maria como o mistério de Deus que irrompe na humanidade no lugar mais insuspeito e da forma mais inusitada: Maria, uma mulher pobre, analfabeta, da periferia da Galiléia, mulher, semelhante a tantas de nosso tempo, envolta em suas tarefas e afazeres diários, longe dos lugares-comuns de teofanias extraordinárias, recebe uma visita de Deus. E de repente, abre-se para a história humana uma nova perspectiva, oposta ao simbolismo de Adão e Eva no Antigo Testamento: de agora em diante, pela resposta positiva e livre daquela pobre mulher, mulher pobre, a humanidade pode vislumbrar novas perspectivas. As portas da glória de Deus, enfim, se abriram para a humanidade.
O lugar, a pessoa, as circunstâncias, o momento…nada no relato de Lucas condiz ao paradigma de um Deus triunfante, senhor dos exércitos, que vem restaurar a gloriosa monarquia de Israel. Ao contrário, vislumbra-se um Deus pequeno, fraco, indefeso, cuja proposta subverte o que se espera das teologias de então. Eis a grande novidade do Evangelho: propõe uma constante revisão de nossas teologias, nossos dogmas mais profundos, nossas formas de ver a Deus, de ver a realidade a partir de Deus.
Como católicos LGBTT’s, nossa contribuição com a Igreja é justamente no caminho que Lucas propõe no relato da anunciação: enquanto seres humanos plenos em dignidade e direitos, ocupamos nosso lugar dentro da igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus, e com isso, a indagamos a rever velhas teologias, velhos moralismos que nada tem a ver com a proposta do Evangelho, de um Reino de vida em abundância para todos.
“Como vai acontecer isso se não conheço homem algum?”, pergunta Maria. Em suas palavras não está presente somente a curiosidade a respeito de uma concepção que exclui o sexo entre homem e mulher, mas uma indagação que encontra raízes no lugar e no papel que a mulher exercia no tempo de Jesus: submissa ao homem, não poderia sobreviver sem este, sem lhe ser dependente, como mãe e mulher. Como poderiam acontecer aquelas coisas maravilhosas a ela, a depender tão somente de sua resposta livre, sem que houvesse um homem de intermediário? Como poderia ela, depois, ser mãe sem um homem que lhe amparasse?
Eis que a resposta do anjo é um decreto de liberdade para a mulher: a intervenção de Deus a tiraria daquele jugo no qual se encontravam as mulheres de seu tempo. Maria seria mãe, não por necessidade de conferir descendência ao marido, mas por livre iniciativa, por vontade de colocar-se à disposição de Deus, na inteira liberdade, e gestar para o mundo a nova criação. Doravante, as mulheres e todos nós somos convidados a rever nossos dogmas, nossas hierarquias patriarcais de gêneros “naturalmente” estabelecidas por Deus, e segundo as qual a mulher existe apenas pela função de ser mãe e para conferir descendência e herdeiros ao marido, preservando a propriedade.
A indagação de Maria, além disso, ressoa familiar a nós, católicos e LGBTT’s em geral. Hoje, como ontem, somos questionados sobre nossas relações afetivas e amorosas: “Como podem formar família se não geram vida? Como podem se casar/se unir se não para reproduzirem-se?”. É o preconceito e a desinformação que nos interpelam e exigem respostas criativas. Mas eis que, novamente, a força subversiva do Deus de Jesus, o Deus do êxodo e da Ressurreição, nos envolve com sua sombra e destrói esquemas moralistas. Em nossas experiências de amor, afetivo, sexual, descobrimos o Deus Criador que gera vida no ato e no gesto de amor, em cada momento de doação e entrega. Assim, restabelece nossa dignidade de seres humanos e nos convida a ocupar um lugar na construção do Reino.
Novamente percebemos que nossa condição nos coloca num lugar subversivo dentro da igreja, o de colocá-la em crise, ao questioná-la, não para se vingar com rancor das vezes em que falsas teologias e moralismos nos excluem da comunhão sacramental, mas para ajudá-la a sair de si e ir ao encontro das periferias existenciais, como nos pede Francisco. Ajudá-la a deixar de ser uma “igreja autorreferencial” e se engajar na causa dos pobres, dos sofredores, daqueles que ainda são excluídos.
Sem rancor, sem ressentimento, queremos fazer parte dessa reconstrução teológica que implica outra forma de enxerga r a Deus. Talvez não totalmente inédita, mas que signifique retornar ao evangelho, à prática e à pregação de Jesus, para descobrir como Deus se mostra no amor, na misericórdia, no perdão e na abertura e entrega generosas, e não no ódio, no fechamento, no moralismo, dogmatismo e tantos ismos mais…
Um Deus que, a despeito das descrições apocalípticas que o associam às trombetas do julgamento final, da condenação e da culpa, se mostra completamente diferente, vindo morar num quarto pobre de uma mulher pobre na periferia do mundo…
Rezemos, com o Papa Francisco:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amém. Aleluia! (Oração retirada da Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”)
Depoimento escrito por Edilson da Silva Cruz, à época membro do Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, de São Paulo, elaborado “coletivamente” – quer dizer, a partir de todas as contribuições à reflexão que ele ouviu na missa do grupo no dia 7/12/13. Publicado originalmente em nosso blog, em 2013.